segunda-feira, 30 de abril de 2012


HISTÓRIA DE UM OLHAR
BRUM, ELIANE
O mundo é salvo todos os dias por pequenos gestos.
Diminutos, invisíveis.
O mundo é salvo pelo avesso da importância. 
Pelo antônimo da evidência. O mundo é salvo por um olhar. 
Que envolve e afaga. Abarca. Resgata. Reconhece. Salva.
Inclui.
Esta é a história de um olhar. Um olhar que enxerga. E por 
enxergar, reconhece. E por reconhecer, salva.
Esta é a história do olhar de uma professora chamada Eliane
Vanti e de um andarilho chamado Israel Pires.
Um olhar que nasceu na Vila Kephas. Dizem que, em grego, 
kephas significa pedra. Por isso um nome tão singular para uma 
vila de Novo Hamburgo. Kephas foi inventada mais de uma 
década atrás pedra sobre pedra. Em regime de mutirão. Eram 
operários da indústria naqueles tempos nada longínquos. Hoje, 
desempregados da indústria. Biscateiros, papeleiros. Excluídos.
Nesta Kephas cheia de presságios e de misérias vagava um 
rapaz de 29 anos com o nome de Israel. Porque em todo lugar, 
por mais cinzento, trágico e desesperançado que seja, há
sempre alguém ainda mais cinzento, trágico e desesperançado.
Há sempre alguém para ser chutado por expressar a
imagem-síntese, renegada e assustadora, do grupo. Israel,
para a Vila Kephas, era esse ícone. O enjeitado da vila
enjeitada. A imagem indesejada no espelho.
Imundo, meio abilolado, malcheiroso, Israel vivia atirado num
canto ou noutro da vila. Filho de pai pedreiro e de mãe morta,
vivendo em uma casa cheia de fome com a madrasta e uma
irmã doente. Desregulado das idéias, segundo o senso comum.
Nascido prematuro, mas sem dinheiro para diagnóstico.
Escorraçado como um cão, torturado pelos garotos maus. 
Amarrado, quase violado. Israel era cuspido. Era apedrejado. 
Israel era a escória da escória. Um dia Israel se aproximou de um
menino. De nove anos, chamado Lucas.
Olhos de amêndoa, rosto de esconderijo. Bom 
de bola. Bom de rua. De tanto gostar do menino que lhe sorriu, 
Israel o seguiu até a escola. Até a porta onde Lucas desaparecia 
todas as tardes, tragado sabe-se lá por qual magia. Até a porta 
onde as crianças recebiam cucas e leite. Israel chegou até lá por 
fome. De comida, de afago, de lápis de cor. Fome de olhar.
Aconteceu neste inverno. Eliane, a professora, descobriu 
Israel. Desajeitado, envergonhado, quase desaparecido dentro 
dele mesmo. Um vulto, um espectro na porta da escola. Com 
um sorriso inocente e uns olhos de vira-lata pidão, dando a 
cara para bater porque nunca foi capaz de escondê-la.
Eliane viu Israel. E Israel se viu refletido no olhar de Eliane. 
E o que se passou naquele olhar é um milagre de gente. Israel 
descobriu um outro Israel navegando nas pupilas da professora.
Terno, especial, até meio garboso. Israel descobriu nos olhos da
professora que era um homem, não um escombro. Capturado por
essa irresistível imagem de si mesmo, Israel perseguiu o olho de
espelho da professora. A cada dia dava um passo para dentro do
olhar. E, quando perceberam, Israel estava no interior da escola.
E, quando viram, Israel estava na janela da sala de aula da
2ª série C. Com meio corpo para dentro do olhar da professora.
Uma cena e tanto. Israel na janela, espiando para dentro. 
Cantando no lado de fora, desenhando com os olhos. Quando 
o chamavam, fugia correndo. Escondia-se atrás dos prédios. 
Mas devagar, como bicho acuado, que de tanto apanhar ficou 
ressabiado, foi pegando primeiro um lápis, depois um afago. 
E, num dia de agosto, Israel completou a subversão. Cruzou a 
porta e pintou bonecos de papel. Israel estava todo dentro do 
olhar da professora.
E o olhar começou a se espalhar, se expandir, e engolfou toda 
a sala de aula. A imagem se multiplicou por 31 pares de olhos 
de crianças. Israel, o pária, tinha se transformado em Israel, o 
amigo. Ganhou roupas, ganhou pasta, ganhou lápis de cor. E, 
no dia seguinte, Israel chegou de banho tomado, barba feita, 
roupa limpa. Igualzinho ao Israel que havia avistado no olho da 
professora. Trazia até umas pupilas novas, enormes, em forma 
de facho. E um sorriso também recém-inventado. Entrou na 
sala onde a professora pintava no chão e ela começou a chorar. 
E as lágrimas da professora, tal qual um vagalhão, terminaram 
de lavar a imagem acossada, ferida, flagelada de Israel.
Israel, capturado pelo olhar da professora, nunca mais o 
abandonou. Vive hoje nesse olhar em formato de sala de aula, 
cercado por 31 pares de olhos de infância que lhe contam
histórias, puxam a mão e lhe ensinam palavras novas.
Refletido por esses olhos, Israel passou a refletir todos eles.
E a professora, que andava deprimida e de mal com a vida,
descobriu-se bela, importante, nos olhos de Israel. 
E as crianças, que têm na escola um intervalo entre a violência e
a fome, descobriram-se livres de todos os destinos traçados nos
olhos de Israel. Israel, não importa se alguém não gosta de você.
O que importa é que você siga a vida, aconselha Jeferson, 
de oito anos. 
Israel, não faz mal que tu sejas grande e um pouco doente, tu 
podes fazer tudo o que tu imaginares, promete Greice, de nove. 
Israel, se alguém te atirar uma pedra eu vou chamar o Vandinho,
porque todo mundo tem medo do Vandinho, tranquiliza Lucas, 
nove.
Israel, tu me botas na garupa no recreio?
E foi assim que o olhar escorreu pela escola e amoleceu as 
ruas de pedra.
Israel, depois que se descobriu no olhar da professora, ganhou o
respeito da vila, a admiração do pai. Vai ganhar uma vaga oficial 
na escola. Já consegue escrever o “P” de professora. 
E ninguém mais lhe atira pedras. A professora, depois que se 
descobriu no olhar de Israel, ri sozinha e chora à toa. Parou de 
reclamar da vida e as aulas viraram uma cantoria. A redenção de
Israel foi a revolução da professora.
Em 7 de Setembro, Israel desfilou. Pintado de verde-amarelo,
aplaudido de pé pela Vila Pedra.




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